São pra ti minha filha estas primeiras palavras Minha filha larva, que só rastejava e sorria Recordo quando ainda nem andavas, nem falavas Querias falar, e quando tentavas mugias Agora levas dezesseis anos de mulher e de vida Tás tão crescida, e já toda vivida Lembras-te quando te levava pros concertos dos teus ídolos Ficavas rendida e toda comovida Agora vês-me assim assolado e abatido Já não sou pai robustecido, sou um homem rendido Era bem mais que bem-sucedido quando tinha a sapataria O negócio fluía, quase cem clientes por dia Até que veio a austeridade Desemprego, miséria, calamidade Já ninguém a consumir, caótico Ficou quando perdi a clientela toda Nem uma parcela restou e eu fui à bancarrota Agora vês me aqui desempregado, mergulhado na tormenta Acabado pro mercado de emprego e nem tenho quarenta Não me dão emprego em nenhum lado, nem um Call Center A minha fé fragmenta sempre que a idade aumenta Hoje eu sou um falhado, um inválido, um teso Olhas pra mim com desprezo, já nem te reconheço Eu enfraqueço ao ver que o teu amor tinha um preço E sempre que me dás essa repulsa vês que eu esmoreço Já nem me respeitas, como se não me conhecesses Às vezes ainda dizes que querias que eu desaparecesse E se eu morresse? Será que te afetaria? Será que a agonia da minha morte não te atingiria? Será que ficarias assim indiferente e fria? Será que nenhuma lágrima de dor te alcançaria? Eu sei que já não sou aquele pai que tu te orgulhavas Que chegava a casa com aquelas prendas que tu ansiavas O pai que amavas e que hoje é um falhado Hoje é só um fardo velho e extraviado Então eu venho cá para casa com as minha amigas E tu não percebes que eu queria ver televisão na sala? Oh, oh Sara Pai, é normal que eu quisesse vir p'ra aqui A TV é maior, vê-se melhor Tem calma, Sara Não podias tar a ver televisão no quarto? Oh Sara, por favor, vamos falar Passas o dia inteiro em casa sem fazer nenhum Sara... E ainda por cima não deixas as pessoas à vontade, que merda! Já agora, mata-me de uma vez Já agora, mata-me de uma vez Já agora, mata-me de uma vez Já agora, dá-me um tiro Já agora, mata-me de uma vez Já agora, mata-me de uma vez Já agora, mata-me de uma vez Já agora, dá-me um tiro Sónia, lembras-te de nós os dois a correr pelo prado A rebolar na relva, colados, dois putos apaixonados, memorável Eu fui o teu primeiro namorado, já são vinte anos partilhados Debaixo do me'mo telhado, notável Mas tudo parece que ruiu, quando o negócio faliu O teu amor extinguiu-se, não sei Onde está o amor que nutriu, e que o meu amor coloriu Eu era o teu calafrio, o teu rei Agora tás sempre exaltada, com essa voz enervada Gritas comigo por nada, por quê? Sempre com fúria exagerada, nunca te vi tão desalmada Nota-se que tás saturada, por quê? Quando a sapataria gerava grandes lucros Tu dizias que o nosso amor seria absoluto E que dele nasceria o fruto que seria o tributo Desta paixão que hoje mergulha no luto Agora só me tratas de forma violenta Sempre a atirar-me à cara que tu é que me sustentas Sempre a atirar-me à cara palavras sangrentas Sempre a atirar-me à cara que já não me aguentas Fazes-me pensar que a nossa união era só um negócio Agora só me dás essa aversão, já nem me queres próximo Não tenho solução senão ficar assim, dócil Eu sei que tás só a uma discussão de pedir o divórcio Vês-me como um tumor, já nem fazemos amor Dormes de costas pra mim como se sentisses pavor Toda a gente sabe que me trais com o vizinho da frente Todo o prédio ouve os teus gritos quando vocês fodem Nem tás preocupada em agir mais discretamente Ainda o trazes pra jantar aqui como aconteceu ontem Eu só tenho de assistir, aceitar, engolir Dependo de ti, não tenho outro sítio pra onde ir Eu só tenho de assistir, aceitar, engolir Porque se eu saísse de casa não teria pra onde ir Porque se eu saísse de casa não teria pra onde ir Já agora, mata-me de uma vez Já agora, mata-me de uma vez Já agora, mata-me de uma vez Já agora, dá-me um tiro Já agora, mata-me de uma vez Já agora, mata-me de uma vez Já agora, mata-me de uma vez Já agora, dá-me um tiro Pedro, o quê que tás a fazer Pedro?! Olha pra mim, calma Sara vem cá, Sara, olha o teu pai Pedro, calma, calma, Pedro por que que tás a fazer isto Por quê? Fala comigo, Pedro Tem calma Disparo Pedro! Ai não, Sara, ai Sara olha o teu pai, Sara Ai, olha o teu pai, Sara Vem cá, olha o teu pai, Sara Olha o teu pai