Dois sacos de cimento dá cem quilos Na cabeça A consciência fica na cabeça? Aqui, na cabeça? Então a minha consciência é pesada Num tem outro jeito A consciência pesa com o cimento que eu carrego Leva dois de uma vez, pra acabar mais rápido, Máquina Eu levava, que era pra atender o meu patrão Ele pede eu faço na hora Aqui é disposição pura E com o patrão não tem miséria Ele me contratou, eu era novo Me viu na rua, perto da loja, passando necessidade No início, não tinha como pagar em dinheiro não Me pagava em comida Eu comia E quanto mais comia, mais trabalhava Era bom demais Comer, não trabalhar De manhã, pão com mortadela Podia pegar duas fatias, três A mortadela não acabava A mortadela era eterna À tarde ele comprava guaraná E no almoço tinha quentinha Cheia até a boca Duas carnes Com o patrão não tem miséria Eu dava moral pro meu trabalho Não foi mole entrar não Eu tinha onze anos, mas era grande, tinha porte Ele me chamou e disse que era pra eu fazer um teste pra ser funcionário da loja Pra ver se eu aguentava o tranco Tinha um caminhão de areia pra encher E eu tinha um tempo pra fazer a tarefa, que ele marcou no relógio de ouro dele Quis nem saber, fiz em menos Triste era o Sol nas costas Nem um ventinho Mormaço da porra Mas eu fiz Aí eu ouvi o patrão falando meio que sozinho, alisando os meus ombros Esse menino parece uma máquina E foi aí que eu virei o Máquina Eu tinha uma professora que não gostava desse apelido Eu contei pra ela que uma caixa de piso caiu no meu pé Rasgou, a caixa e o pé Tive que ir pra escola de chinelo, mancando Ela reclamou, disse que Máquina era lá jeito de chamar alguém Que eu tinha um nome E que meu nome era bonito Mas aí na hora da chamada, em vez de me chamar pelo nome bonito Ela me chamava pela porra de um número A sala cheia, e eu fazia maior esforço pra ouvir Quarenta e um Presente Faz um favor, professora, entre ser o quarenta e um ou ser o Máquina Eu escolho o pão com mortadela e as duas carnes Aqui na escola nem guaraná serve É suco com caju ralo Já com o meu patrão não tem miséria Mas aí um dia o patrão veio com um papo estranho Um papo torto, esquisito Disse que era pra eu ficar até mais tarde na loja Hoje vai ter janta também, Máquina Fiquei, só que a contragosto É que ninguém mais ficou Ele me levou pro depósito Ficou passando a mão no meu ombro que nem no dia do teste Aí ele disse que queria que acabasse com ele, que nem uma máquina Meu patrão tirou a roupa Vamo lá, eu tinha doze anos Eu nunca tinha encostado em ninguém Vem cá, Máquina Não fui Vem cá, Máquina Fui não Ele se levantou Tava que nem um cachorro Quanto te pago por dia? Paga trinta, patrão Então agora é cinquenta Meu Deus, um galo é muita grana Desconfiei Vai cortar a quentinha? As duas carnes? A mortadela? Ele disse que não Era cinquenta mais a comida Com o patrão não tem miséria A partir daí era duas, três vezes por semana Eu dormia com aquela voz na cabeça Máquina. Máquina. Vai Máquina. Máquina Que nem uma locomotiva De manhã e de tarde, me matava de carregar caminhão com pá de areia Transportar caixa de piso, levar dois cimentos de uma vez E à noite atendia ele Só que quando eu tinha catorze anos, eu entendi Não foi a professora que me ensinou, não foi a escola, não foi a família Não foi gente do governo, nem polícia Aliás, um policial que pegava um arrego com ele até viu a gente no depósito Riu e saiu, o filho da puta Como depender de um verme desse? Então foi sozinho mesmo. Foi eu. Foi por conta Cresci e entendi. Um dia acordei com aquela voz Vai Máquina. Vai Máquina. Vai Máquina E percebi que o patrão me pagava pra eu comer ele Percebi assim, no automático Fui trabalhar normalmente Aliás, normalmente, não Eu tava um absurdo naquele dia Só tinha eu de peão Geral tinha faltado Fiz o serviço de três Mas também comi a quentinha de três, a mortadela de três e bebi o guaraná de três Fechei as portas da loja cinco horas Ele já tava que nem um cachorro no depósito Em cima do cimento, com a cara e os ombros cinza Vem, Máquina Eu fui com força Ele gemia, gritava Máquina, Máquina, Máquina Aí eu cravei Cravei a faca pra churrasco, que a loja vendia, na barriga dele Ele caiu em cima do próprio sangue Por que isso, Máquina, por que isso? Chutei as costas Para, pelo amor de Deus, Máquina. Pisei no pescoço Não me mata, sua consciência vai ficar pesada, Máquina Consciência? Essa que fica na cabeça? A consciência pesa com o cimento Com os dois sacos que levo de uma vez pra adiantar a tua entrega Tem como ser leve não patrão Tenha pena então, Máquina Primeiro eu cuspi na cara dele Depois eu falei: Pena é coisa de gente. Eu sou Máquina Eu não era mais gente não Por isso é que bati. Chutei. Pisei. Estrangulei Só conservei a cara por causa do enterro Aliás, eu bem que queria ir no enterro dele Com certeza vão servir quentinha Guaraná e mortadela Com o patrão não tem miséria