Sempre a tocar o cavalo João da gaita se criou Nem sabia o que buscava Se estrela, estrada, horizonte Andava como os arroios Que desprendidos da fonte Procuram seu próprio curso Pelos acasos do chão O claro clarim dos galos Cada nova madrugada Já o encontrava encilhando Para a invenção de outro rumo E as nazarenas cantavam Em contraponto aos cochichos Elas também dois galitos Armados em couro e prata Com esporões de treze pontas Sonorizando as manhãs Quando a noite era mais clara E o caminho parecia Um longo rio preguiçoso Entortilhado da Lua João da gaita e seu cavalo Lembravam, pelo perfil Um barco a vela fugindo Pelas pratas deste rio Se alvorotavam as estâncias Quando o gaudério chegava No seu jeitão despachado De índio caminhador Na garupa a oito-baixos Que só faltava falar E na garganta as notícias Do mundo velho largado Por onde houvera cruzado Na sua sina de andar Eram novas de peleias De mercâncias e cambichos De sucessos em bolichos Conchas de tava e carreiras E tudo à sua maneira De entender o assucedido Filosofando comprido Como um rábula sabido Em tricas de tribunal À noite, rente do fogo O andarengo abria a gaita Como quem abre um missal Oficiante extraordinário Que das pautas do hinário Só repicava aleluias Para o concerto ritual Quando estirava os dois braços Abrindo os foles da gaita O celebrante do ofício Recordava Jesus Cristo No lenho do sacrifício No seu dia da paixão E o fogo bordava rendas No bastidor estirado Do santa-fé do gaipão E a cuia fazia roda Na ciranda centenária Da volta do chimarrão E a gaita velha chorava Que nem China candongueira Que enfrenou para carreira O flete do coração Cantava o primeiro galo Mais um mate, e o andarengo Sentava os recaus no pingo Para a jornada do dia Quando o Sol aparecia João da gaita, lá da estância Lembrava, já mui longito No pala branco abanando Algum João-grande voando Na direção do infinito Um dia, no pampa largo Clarins de guerra tronaram Chamando à revolução Pelas estâncias e vilas Caudilhos juntavam gente Pra o entrechoque iminente Jogando irmão contra irmão João da gaita, o andarengo Mesmo pouco percebendo Qual o sentido da luta Também foi na reculuta Como vaqueano da tropa Quando os caudilhos gritavam Pela coragem dos tebas Nas cargas de espada e lança Os cascos da cavalhada Multiplicavam tambores No couro tenso do chão Era a luta - transformando Cada local de combate Num campo-santo onde as cruzes Eram o "esse" das adagas Espetadas contra o céu Nos fogões de acampamento Pelos alces dos combates A velha gaita se abria Num responso varonil E a indiada lembrando bailes Surungos de trocar passo Ia marcando o compasso Na coronha do fuzil E João da gaita pensava Olhando as mãos nas hileiras Que aquelas manoplas largas Por tempos de paz e guerra Tinham distinta função Pelos combates e encontros Empunhando adaga e lança Semeando a destruição E nos descansos da luta Puxando a gaita manheira Nas comunhões de alegria Das rodas de chimarrão La fresca, não entendia Por que sina Deus lhe dera Duas funções tão distintas Para o mesmo par de mãos Porque a lo largo entendia Que pelear estava errado Quando no campo da luta Justava irmão contra irmão - Ah, se pudesse algum dia Ver a querência irmanada Sem que faltasse nenhum Num grande baile comum À sombra de uma ramada E ele de gaita estirada Que nem cobra em ressolana Compassando a meia-canha Das polcas de relação Lá um dia percebeu Para o seu entendimento De índio meio bagual Que o que chamavam ideal Era apenas, bem pensando Ambição pura de mando Dos chefões da capital Daqueles que concitando A gauchada ao combate Ficavam tomando mate Peleando só por jornal Desses que sonham, afinal Por chegar de qualquer jeito Seja forçando um direito Seja quebrando um acordo Ao saleiro de boi gordo Da governança estadual Numa noite muito escura Atou a gaita nos tentos E, pingo pelo buçal Largou-se do acampamento Três horas antes do dia Para mandar-se a la cria Direito à banda oriental Desertor? Talvez o fosse Fazia pouca questão Mas desertor por consciência Ficasse bem entendido - Soldado não é bandido Para abater um amigo Só porque manda o chefão Nunca mais se soube dele Porque nunca mais voltou Quem sabe pra não ouvir Pelas charlas de galpão A tristeza dos assuntos Lembrando os tauras defuntos Sacrificados em vão Quem sabe pra não ouvir Sua história mal contada Por quem jamais a entendeu Por quem apenas colheu De um gesto todo razão A mentirosa aparência De ter negado a querência Como covarde e fujão Morreu, decerto, sem ter Realizado o seu sonho Que é a impossível miragem Dos puros de coração Ver a querência irmanada Sem que lhe falte nenhum Num grande baile comum À sombra de uma ramada