Uma casa simples alugada há alguns meses Numa rua calma, no número 13 No portão pequeno vende-se biju Fachada apagada, branca e azul Em cima do muro um bichano circense Quando o latido vira-lata não convence Roupa pendurada no varal de bambu E a sombra preguiçosa do pé de caju Dois degraus e o chão vermelho desenha Uma cozinha perfumada pelo fogão a lenha Quem tem a senha tá de costas na pia De chinelo de borracha e avental de bolinha Por baixo um penhoar bordado de linha Cabelo cacheado esconde a lágrima que pinga A lágrima da desconfiança quem assina É a personagem da história, dona Vilma Casada por amor com autorização dos pais Ainda era menor cinco anos atrás Saíram de Goiás pro Bairro do Pari E um casal apaixonado vencia o mundo ali O juramento de amor intenso e eterno de Vilma e Ernesto Veio refletir num brilho de glória A menina Vitória Seu sorriso os que choravam fazia sorrir Suja de tinta, suada, faminta Volta da escola e encontra o pranto da Vilma Joga a mochila como um furacão Katrina E abraça, não chora, mamãe comovida O choro começou quando tocaram a campainha E disseram pra Vilma que o marido a traía Ela já sabia, mas não acreditava Abatida, machucada, ferida, respondia Protesto, meu marido eu não empresto Ele é só meu e não tô nem aí pro resto Trabalhador, fiel, honesto, um ótimo pai Calúnia contra o Ernesto O discurso foi bonito, mas murcho Falou, falou, falou, mas não quis dizer muito Se sentiu desonrada, sem rumo Menos mulher, sem orgulho Vilma, vou sair com a Vivi e não demoro Logo tô de volta, não se esqueça, te adoro E na manhã chuvosa, Ernesto de folga Saiu pra passear com sua menina Vitória Vilma tava em casa no seu passa tempo, a louça Ouviu bater na porta o carteiro e sua bolsa Tava encharcado, a chuva tava muito grossa Entra e se enxuga, disse a menina moça Coisas perversas visitaram o pensamento E lembrou da conversa, da traição no momento No fundo, no fundo ela ouviu tudo E as palavras fofoqueiras encontraram refúgio De pouco em pouco entrou no coração Preciso dar àquele cachorro uma lição Se aproximou do carteiro e sussurrou O carteiro entendeu a mensagem, se encantou Suma doçura, seu perfume depura E aquele lago azul de ternura contaminou E nisso Ernesto voltou, que desgosto Viu na fresta da janela e escondeu o rosto Ah! Martírio, tortura, agonia Não acreditava o que seus olhos lhe dizia O silêncio angustiante da morte o alcançou Aquela morte que o corpo continua com dor O suor pela têmpora, escorria E a sua mão trêmula sacudia E o sangue foi subindo, o ódio em sua mente O punho contraindo, também contraía os dentes Com a face sombria, sua honra partida Pensou em muitas coisas, deu um frio na barriga Olhou pra trás, a pequena Vitória Entra no carro, filha, vamos embora! Respirou fundo, atordoado, ficou confuso Pôs a filha no carro, nem pôs o cinto e saiu disparado O pneu careca, o farol queimado É no pedal direito que se descarrega a raiva A chuva tá mais forte e a estrada é uma tocaia E quando, de repente, na curva do rio Uma poça, a derrapagem, capotou e caiu O resgate há dois dias na labuta da busca Encontraram um Fusca tão torto que assusta Um soldado cansado sem esperança resmunga Que o rio levou os corpos e cadáver não afunda No terceiro dia, na margem ao lado Um corpo achado, inchado, desfigurado Desanimaram, só um corpo e mais nada Vilma sem família com a tristeza exata Vestida de luto, em pânico aos soluços Com a consciência e o coração imundo Desgosto profundo, aflição amarga Ninguém é preparado pra levar essa carga Viúva sem trabalho, sem dinheiro Já bastava, mas o fruto proibido do pecado não apaga A fome, o cansaço invadiram sua casa E a gravidez é o castigo, a chaga A calma do ar, o silêncio do feto Enfraqueceu seu ânimo, não tinha afeto É só um objeto, e não é de Ernesto Vou tirar isso de mim, com agulha eu espeto Depois de todas tentativas do mundo Prosseguiu a gravidez com um nojo profundo Amargura, a dor aguda, lembrou da traição A tristeza visitou novamente o coração Aceitou o carteiro como esmola Vilma queria sua família de volta O carteiro Edvaldo aceitou a proposta Se o filho não é dele, tudo bem, ele adota Queria colocar o seu nome e sobrenome Pra Vilma tanto faz, só não quer passar fome Nasci com desprezo, odiado, indefeso Sem esperança, com medo ao relento Mas com o mesmo nariz, boca, cabelo crespo Fisionomia de Ernesto, um homem preto Um dia ainda quero me encontrar com a Vivi Minha irmã que, sem eu ver, posso sentir Meu pai, um grande homem que jamais a traiu Morreu de desgosto antes de cair no rio Queria ter meu pai de volta com vida Pra nunca me chamarem de Edvaldo Silva